quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Lá fora a rua vazia, chora.



          Meditava sobre a minha condição, perdido no deserto e ameaçado, nu entre a areia e as estrelas, afastado por um longo silêncio dos pólos da minha vida [...] Era apenas um mortal perdido entre a areia e as estrelas, consciente da única doçura de respirar...
         Contudo eu me descobria cheio de sonhos. Sonhos que me vinham em silêncio, como água de nascente, sem que eu compreendesse, a princípio, a doçura que me invadia. Não houve imagens nem vozes, mas o sentimento de uma presença, de uma ternura próxima, que eu já adivinhava. Então compreendi e me abandonei, de olhos fechados, aos encantamentos da memória.
         Havia, em algum lugar, um parque cheio de pinheiros escuros e tílias, e uma velha casa que eu amava. Pouco me importava que ela estivesse distante ou próxima, que não pudesse cercar de calor meu corpo, nem me abrigar, reduzida apenas a um sonho; bastava que ela existisse para que minha noite fosse cheia de sua presença. Eu não era mais um corpo de homem perdido no areal. Eu me orientava. Era o menino daquela casa, cheio da lembrança de seus perfumes, cheio da fragrância dos seus vestíbulos, cheio das vozes que a haviam animado. E chegava mesmo até mim o coaxar das rãs nos charcos próximos. Precisava desses mil sinais para reconhecer a mim mesmo, para descobrir de quantas ausências era feito o gosto daquele deserto, para achar um sentido naquele silêncio feito de mil silêncios, naquele silêncio em que até as rãs emudeciam.
Não, eu não me estirava mais, solitário entre a areia e as estrelas.
         Da paisagem recebia apenas uma fria mensagem. Mesmo aquele gosto de eternidade que eu pensei viesse do deserto tinha outra origem. Eu revia os grandes armários solenes da casa. Eles se entreabriam mostrando pilhas de lençóis alvos como a neve [...]
Ah, eu bem te devo uma página! Quando eu voltava de minhas primeiras viagens, Mademoiselle, eu te encontrava coma agulha na mão, afundada até os joelhos em tua sobrepeliz branca, cada ano um pouco mais enrugada, os cabelos um pouco mais alvos [...] Quando era menino já vivia rasgando as camisas – ah, que infelicidade! – Já vivia esfolando os joelhos e depois vinha correndo para casa, como naquela tarde, para que tratassem de mim.
         Mas não, não, Mademoiselle! Não era mais o fundo do parque que eu vinha agora; era dos confins do mundo. E trazia comigo o odor acre das solidões, o turbilhão dos ventos de areia, as luas deslumbrantes dos trópicos!
          Eu sei, eu sei – tu me dizias –, os meninos são assim, pensam que são muito fortes, vivem em correrias, se machucam todos. Mas não, não Mademoiselle, eu havia ido além do parque. Ah, se soubesses como essas sombras do parque são pouca coisa! Como parecem perdidas entre os areais, as rochas, as florestas virgens, os charcos de terra! Sabes, ao menos, que há terras em que os homens, logo que enxergam a gente, apontam suas carabinas? Sabes que há desertos, Mademoiselle, em que a gente dorme numa noite gelada, sem teto, sem cama, sem um lençol, Mademoiselle?
        E tu dizias: – Ah, menino...
        Eu não abalava a tua fé como não abalaria a fé de uma velha serva da Igreja. Lamentava o teu destino humilde que te fazia cega e surda... Mas esta noite, no Saara, sozinho entre a areia e as estrelas, eu te faço justiça.
       Não sei o que se passa em mim. Esta força de gravidade me liga ao chão quando tantas estrelas são imantadas. Uma outra força de gravidade me prende a mim mesmo. Sinto o peso que me une a tantas coisas! Meus sonhos são mais reais que estas dunas, estas dunas, esta lua, estas presenças. Oh, o que há de maravilhoso numa casa não é que ela nos abrigue e conforte, nem que tenha paredes. É que deponha em nós, lentamente tantas providências de doçura. Que forme, no fundo de nosso coração, essa nascente obscura de onde correm, como água da fonte, os sonhos...

Terra dos homens, de Saint-Exupéry

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