sexta-feira, 8 de julho de 2011

Pecado

No pequeno quarto mal iluminado, em que a cortina deixava passar apenas um feixe de luz dos antigos postes da cidade, de fronte ao espelho, olhou-se serenamente pela última vez, cobrindo com véu negro seus longos cabelos. Fechou a velha porta que denuncia sua idade no ranger firme e sonoro. Desceu determinada a escadaria do convento que séculos atrás estava isolado, prostrado em meio às campinas e florestas e hoje cercado pela cidade de Crizaelis. A jovem seguiu seu destino corriqueiro.
Percebendo a evolução do lugarejo, tanto em suas indústrias, comércio, construção de prédios, mas também em suas zonas de prostituição, uso de drogas e principalmente a violência e banditismo que vem tomando conta do lugar, a Freira resolveu organizar um programa de evangelização das mulheres do presídio local. Três vezes por semana a jovem e séria Freira toma o caminho do presídio feminino que fica cerca de 9 quadras do convento.
As noites de Crizaelis são frias, as ruas de paralelepípedos esfumaçadas e estreitas são dominadas por pequenas salas comerciais que vão se fechando enquanto ela passa pelas ruas no início da noite. Há tempo apenas, de cumprimentar os proprietários que rapidamente fecham suas portas depois de um dia de labor, temerosos a algum assalto noturno.
Enquanto isso, perto dali, em um minúsculo apartamento, calmamente uma mão masculina segura firmemente uma lâmina, enquanto assovia uma pitoresca música, escutasse o suave barulho da água que escorre livre pela torneira da pia no pequeno banheiro. Mais ao fundo temos também as buzinas e motores, risadas maliciosas e barulhos de passos nas calçadas do local mais movimentado da cidade. Ele também se observa no espelho, retirando com a lâmina sua barba escura e lambuzada pela espuma branca. Seus olhos verdes e compenetrados parecem estar elaborando seus planos para essa noite.
Arruma-se sem pressa vestindo seu velho casaco marrom. Cumprimenta a prostituta drogada do apartamento vizinho enquanto fecha a porta que contém cinco fechaduras. Passa pelo escuro corredor do prédio até avistar um clarão cheio de luzes piscantes, fumaças, barulhos e pessoas: É a rua. É o seu destino.
Acende um cigarro e cumprimenta um engraxate antes de atravessar a rua. Ele sai daquele agito e balburdia. Todos ali o conhecem, e ele sabe bem o que pode acontecer ali durante a madrugada. O que ele quer é o imprevisível, é o acaso e a novidade.
Chegando no presídio a Freira se depara com uma rebelião, as mulheres da ala C e D colocaram fogo em seus colchões e estão armadas. Há muitos mortos e feridos, a maioria, policiais que tentaram conter a ação das criminosas. A esperançosa Freira acredita que com sua amizade e afeto estabelecidos durante este tempo de contato com as detentas poderá reverter à situação. Então tenta adentrar nos blocos e dialogar com as líderes da rebelião. Depois de algumas horas a jovem Freira retorna a sala de controle do presídio e diz ter resolvido o problema, descobrindo as exigências que as presidiárias fazem e convencendo-as a cessarem com a rebelião. Ela está diferente, agora tem um olhar firme e seu rosto não parece mais tão angelical, com voz rude ela apresenta ao policial chefe o trato feito com as detentas e exige-lhe que as trate com dignidade apesar dos prejuízos causados no prédio e nas mortes que ocorreram.
Um copo de whisky é colocado no balcão depois de um último gole, o homem pega de seu casaco marrom mais um cigarro e antes de acendê-lo presta atenção na conversa da mesa ao lado, dois rapazes comentam sobre o que acabaram de ver, antes de chegar ao bar, passavam pelo presídio e lá está acontecendo uma rebelião. Enquanto dá sua primeira tragueada, ele fica curioso e resolve conferir o que está acontecendo.
Quando a Freira, exausta e abalada começa a tomar o caminho de saída do prédio, com lágrimas discretas no rosto e segurando em uma de suas mãos seu terço depois de passar este estressante episódio, o presídio é tomado por uma alta música que saí de seus alto falantes e a polícia adentra os galpões da ala C e D e inicia uma verdadeira chacina, com direito a abusos sexuais.
Conforme ela se afasta do local os ecos dos tiros e da música vão esvaindo-se pelo ar e seu sofrimento também. Agora o olhar da jovem volta a ficar áspero, parece que friamente ela perdeu suas crenças. De repente, alguém atira um toco de cigarro em seu hábito. Ela olha assustada para frente e não enxerga nada além de lojas vazias e alguns poucos carros que passam pela rua silenciosa. Subitamente ela é puxada para um beco escuro onde é pressionada contra a parede. O homem a segura pelo pescoço, amassando seu limpel[1] com uma das mãos. Os olhos agressivos e vermelhos do homem fitam o rosto da religiosa que se debate tentando escapar. Ele cospe no rosto dela e enquanto ergue sua batina tocando suas finas pernas pressionando seu corpo contra o dela.
Neste instante, a Freira tem seus olhos esbugalhados e ouve-se um tiro seco que ecoa na silenciosa rua. Entre seus corpos descarnados começa a escorrer o rubro sangue. Os olhos verdes se fecham ao mesmo tempo em que sua mão quente afasta-se do corpo da Freira estendendo-se no chão molhado, frio e sujo do beco.
A mulher pega do bolso do casaco marrom um cigarro, acende-o, retira seu véu e sai do beco tomando rumo ao agito noturno de Crizaelis.



[1] Item do traje das Freiras, sendo um lenço branco utilizado em volto do pescoço.


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